«Neste mesmo dia [14 de abril] ao sol-posto lançámos âncora em direito dum lugar que se chama Melinde (...).
Ao dia de Páscoa nos disseram estes mouros, que tínhamos cativos, que em a dita vila de Melinde estavam quatro navios de cristãos, os quais eram índios; e que se os quiséssemos ali levar que dariam por si pilotos cristãos, e tudo o que nos fizesse mister, assim de carnes, água, lenha e outras coisas. E o capitão-mor, que muito desejava haver pilotos daquela terra, depois de termos tratado este partido com estes mouros, fomos pousar de fronte da vila (...)
A quarta-feira, depois do jantar, veio el-rei [de Melinde] em uma zavra, e veio junto dos navios; e o capitão saiu em o seu batel, muito bem corregido, e, quando chegou onde el-rei estava, logo se o dito rei se meteu com ele. E ali passaram muitas palavras e boas, entre as quais foram estas: dizendo el-rei ao capitão que lhe rogava que fosse com ele a sua casa folgar, e que ele iria dentro aos seus navios, e o capitão lhe disse que não trazia licença de seu senhor para sair em terra, e que se em terra saísse que daria de si má conta a quem o lá mandara; e o rei respondeu que se ele aos seus navios fosse que conta daria de si ao seu povo, ou que diriam? E perguntou como havia nome o nosso rei, e mandou-o escrever; e disse que se nós por aqui tornássemos que ele mandaria um embaixador ou escreveria. E depois de terem falado cada um o que queria, mandou por todos os mouros que tínhamos cativos, e deu-lhos todos; do qual ele foi mui contente, e disse que mais prezava aquilo que lhe darem uma vila. E o rei andou folgando derredor dos navios, donde lhe atiravam muitas bombardas e ele folgava muito de as ver atirar; e nisto andaram obra de três horas. E, quando se foi, deixou no navio um seu filho e um seu xerife; e foram com ele, a sua casa, dois homens dos nossos, os quais ele mesmo pediu que queria que fossem ver os seus paços. E mais disse ao capitão que pois ele não queria ir a terra que fosse ao outro dia, e que andasse ao longo da terra, e que ele mandaria cavalgar seus cavaleiros.
Estas são as coisas que o rei trazia. Primeiramente uma opa de damasco, forrada de cetim verde; e uma touca na cabeça, muito rica; e duas cadeiras de arame, com seus coxins; e um todo de cetim carmesim, o qual toldo era redondo e andava posto em um pau; e trazia um homem velho por pajem, o qual trazia um terçado que tinha a bainha de prata; e muitos anafis; e duas buzinas de marfim da altura de um homem, e eram muito lavradas e tangiam por um buraco que têm no meio; (...)
Ao domingo seguinte, que foram 22 dias do mês de Abril, veio a zavra de el-rei a bordo (...) E como foi o recado, el-rei lhe mandou logo um piloto cristão* (...). E folgámos muito com o piloto cristão que nos el-rei mandou.»
Relação da primeira viagem à Índia pela armada chefiada por Vasco da Gama
* Tratava-se de um famoso piloto árabe chamado Ahmad ibne Majid, que os cronistas portugueses denominaram Maleno Canaqua ou Cana.
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Visita do rei de Melinde aos navios |
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Vasco da Gama ouvindo o piloto
(pintura de José Malhoa) |
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