Faz hoje 50 anos que foi posto à venda o livro em que o general António de Spínola pôs em causa a política colonial do Governo do Estado Novo.
O General Spínola foi Governador-Geral e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, tendo regressado ao Continente (à Metrópole) em meados de 1973.
«(...) designado o Novo Ministro de Defesa, Prof. Silva Cunha, o General Spínola mostrou o maior interesse em ocupar funções que lhe permitissem partir em viagem para África. Encarou-se, primeiro, a hipótese de o nomear Inspector Geral das Forças Armadas, mas levantaram-se dificuldades da parte das hierarquias militares. Surgiu, a seguir, a solução de criar o lugar de Vice-Chefe de Estado Maior General, com quatro estrelas, para coadjuvar o Chefe por cuja delegação despacharia e foi nesse sentido que se decidiu, com acordo e aprazimento do interessado.
(...)
[Spínola] Anunciou, então [no dia em que tomou posse daquele cargo], a publicação para os próximos dias do seu livro. Julgava eu que fosse apenas a exposição e defesa da tese federalista e das vias para a tornar praticável. Perguntei-lhe se estava já autorizado a publicar. Respondeu-me que certamente o governo tinha confiança nele...
- Não, senhor general, o problema não é ter ou não ter confiança. Mas observar as leis e regulamentos militares. O senhor acaba de ser empossado no segundo lugar da hierarquia das Forças Armadas e não vai certamente querer começar por cometer uma infração à disciplina que lhe tiraria autoridade para a impor aos outros. Se tem alguma relutância em submeter aos seus superiores imediatos a apreciação do que escreveu eu próprio me ofereço para fazer a leitura e posso garantir-lhe que a farei com a maior largueza de espírito.
Confessou-me que pensara muito se me devia dar a ler o livro, ou não. E concluíra pela negativa. Porque sustentava pontos de vista que nem todos aceitavam mas que considerava indispensável trazer a lume e, de duas, uma: ou eu admitia a publicação e isso me comprometeria, ou não admitia e, pensava ele, daí resultaria grave inconveniente para o País.
Voltei ao meu ponto de vista: que fosse eu ou outro a fazer a leitura, era indiferente, contanto que se respeitasse a regra de que um oficial na actividade do serviço não pode publicar opiniões sobre matérias políticas sem autorização superior. E aqui surgiu uma dúvida: que dizia a lei? Autorização superior ou autorização ministerial? Nenhum de nós tinha a certeza. O General iria verificar. Porque na primeira hipótese bastava que fosse dada pelo Chefe do Estado Maior General como seu superior. Este que lesse o livro e decidisse ou, quando a competência não lhe pertencesse, que emitisse o seu parecer para o Ministro da Defesa resolver.
E nisto ficámos.»
Marcello Caetano, Depoimento
O parecer do Chefe do Estado Maior General, General Costa Gomes (de 11 de Fevereiro de 1974), foi favorável, afirmando que o autor do livro «defende com muita lógica uma solução equilibrada que podemos situar mais ou menos a meio de duas soluções extremas que têm sido largamente debatidas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a de integração num todo homogéneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas de direita. Não necessitamos de desenvolver grande argumentação para concluirmos que estas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva aos interesses nacionais e a segunda por ser inexequível.» A publicação do livro seria um serviço "brilhante" prestado ao país.
O Ministro da Defesa não terá tido a possibilidade de ler o livro:
«Comunicou-me que fizera diligências para se inteirar do conteúdo do livro, mas sem resultado: deparara com decidida resistência. Estranhava, como era natural, a recusa e temia que o livro não fosse apenas a defesa da solução federal como até aí pensávamos e até do parecer se inferia. Que fazer?»
Marcello Caetano, Depoimento
Sendo público que o livro estaria para sair, Marcelo Caetano considerou não ser "conveniente que se pusesse a correr a notícia de que fora proibido pelo governo, tratando-se da obra de um homem até há pouco cumulado de honrarias e que acabava de ser investido num lugar da maior confiança."
Se Costa Gomes, "o principal conselheiro para os assuntos militares do Chefe do Governo e do Ministro da Defesa", subscrevera aquele parecer, "não deixara certamente de ponderar a delicadeza da sua posição pela qual era altamente responsável." Marcelo Caetano "não podia admitir que tais pessoas não tivessem a noção do interesse nacional e do dever militar". Um desconfiado Ministro da Defesa lançou o despacho da autorização da publicação.
A 18 de Fevereiro, Marcelo Caetano recebeu um exemplar de Portugal e o Futuro, com "amável" dedicatória do autor.
«Só no dia 20 consegui, passadas já as onze da noite, encetar a leitura ao cabo de uma fatigante jornada de trabalho. Já não larguei a obra antes de chegar à última página, por alta madrugada. E ao fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado militar, cuja marcha eu pressentia há meses, era agora inevitável.»
Marcello Caetano, Depoimento
O Presidente da República também recebeu um exemplar do livro, a 21 de Fevereiro, com uma dedicatória em que Spínola justificava estar convicto de "prestar ao país um serviço na hora grave em que não é lícito recusar o contributo para o esforço comum de prosseguir a grandeza de Portugal".
Américo Tomás que, mais tarde, vai escrever em memórias (Últimas Décadas de Portugal) que «tratando-se de um livro mais político e económico do que militar, não deveria ter sido pedido parecer ao CEMGFA, nem basear nele a autorização de publicação. Em suma, Thomaz considera o parecer um erro e que nem Caetano nem Silva Cunha estiveram à altura dos cargos que ocupavam ao autorizar o livro.» (José Matos e Zélia Oliveira, Rumo à Revolução)
O livro era o sinal da existência de fracturas na política do regime, assumindo algumas posições discordantes do discurso oficial. A política colonial era posta em causa e Spínola tornou público o conflito com o Governo. «Poderia alcançar-se a vitória retirando às forças de subversão a vontade de combater pela adesão da sua massa à causa da ordem estabelecida, ou levando os interesses que as apoiam a retirar o seu auxílio. Em qualquer dos casos, porém, seria uma vitória política e não militar. E como é utópico pensar que aqueles interesses desarmem enquanto a massa revelar vontade de combater, apenas resta uma via para a solução do conflito - e essa eminentemente política.
Podemos assim chegar à conclusão que, em qualquer guerra deste tipo, a vitória exclusivamente militar é inviável. Às Forças Armadas apenas compete, pois, criar e conservar pelo período necessário - naturalmente não muito longo - as condições de segurança que permitirão soluções político-sociais, únicas susceptíveis de pôr termo ao conflito.»
António de Spínola, Portugal e o Futuro
Parece haver unanimidade que "a federação de Estados lusíadas proposta por Spínola já estava ultrapassada quando Portugal e o Futuro chegou às livrarias".
«O livro não é importante pelo que diz — um conjunto de vulgaridades —, mas porque coloca um sector das Forças Armadas perante a evidência de um general encarar a solução da guerra por vias políticas.» Isso terá contribuído para que alguns militares indecisos acabassem por se decidir a alinhar com o MFA que avançava em caminho autónomo. (Carlos Matos Gomes)
«(...) sem o Portugal e o Futuro publicado, haveria um setor significativo das Forças Armadas que talvez se tivesse sentido menos motivado para aderir ao Movimento dos Capitães. É que o livro de Spínola, independentemente do seu conteúdo não muito radical sobre a política colonial, acabou legitimar interrogações sobre o fim da guerra. E muita gente, nas Forças Armadas, só aderiu ao golpe porque estava motivada pelo dissídio de Spínola.» (Francisco Seixas da Costa)
Os jornais República e Expresso deram ampla divulgação à publicação do livro. Álvaro Guerra, que fazia o fecho da edição do República, arriscou o título «'A guerra está perdida’, afirma o general Spínola, no seu livro Portugal e o Futuro, publicado hoje». No Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa e Pinto Balsemão "fizeram render o peixe".
A venda foi um sucesso - largas dezenas de milhares de exemplares vendidos em poucas semanas.
E as ondas de choque iriam suceder-se...